Livros
Fervor de São Paulo e Buenos Aires

Fotografias de B.J. Duarte e Horacio Coppola, reunidas em livros, lançam olhar nostálgico a metrópoles latino-americanas

CRISTIANO MASCARO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A fotografia e as cidades têm um caso bem antigo de atração à primeira vista. De fato, em 1827, quando Joseph Nicéphore Nièpce julgou-se apto a se imortalizar como um grande inventor, não pensou duas vezes: munido de uma pesada câmera, caminhou até a janela de sua casa em Chalon-sur-Saône e, pronto! Sapecou a primeira fotografia da história mirando, justamente, os edifícios que dali podia avistar.
Deste instante decisivo (na verdade a tomada da fotografia durou 8 horas, mas essa é outra história) em diante, as cidades nunca deixaram de ser protagonistas assíduas da produção fotográfica. Tanto é que, por volta de 1930, dois diligentes fotógrafos, Benedito Junqueira Duarte (1910-1995) e Horacio Coppola (1906) dedicaram-se a registrar, quase simultaneamente e com os mesmos propósitos, São Paulo e Buenos Aires respectivamente. E o resultado de seus trabalhos nos chega agora às mãos da mesma forma, quase simultaneamente, pelas edições de "B.J. Duarte -Caçador de Imagens" (Cosac Naify) e de "Horacio Coppola -Visões de Buenos Aires" (Instituto Moreira Salles).
"B.J. Duarte - Caçador de Imagens" possui um mérito indiscutível: revela, causando enorme espanto, uma São Paulo que não existe mais. A enorme diferença entre as paisagens da cidade fotografada há 70 anos e aquelas que podemos observar nos dias de hoje provocou enorme comoção nas almas da Paulicéia, hoje, evidentemente, muito mais desvairada. Haja vista a recente repercussão na imprensa provocada pela revelação destas fotografias realizadas, a partir de 1935, por Benedito Junqueira Duarte ao ser encarregado por Mário de Andrade, então Secretário da Cultura, de registrar as realizações do governo.
No entanto, se formos observar essas imagens do ponto de vista puramente da criação fotográfica, não devemos nos iludir. Tal repercussão é produto da pura nostalgia de tempos que não voltam mais. Repetindo: não há dúvidas de que B.J. Duarte foi dotado de "um forte senso de documentação histórica", como frisa Rubens Fernandes em seu texto, o que, no entanto, não basta para que possa ser reconhecido como um fotógrafo inspirado.
Apesar de ter se dedicado à documentação da cidade em um período crucial de grandes transformações, B.J. Duarte raramente produziu imagens surpreendentes. Em sua maioria, são registros burocráticos e ufanistas de jovens estudando ou praticando exercícios físicos em parques infantis. Ou são "fotos oficiais", preocupadas só em registrar as realizações do governo ao qual servia sem se esforçar para revelar, através de uma visão pessoal e crítica, a cidade que via se agigantar.
As últimas páginas do livro, reservadas aos retratos, que são poucos, infelizmente, revelam, aí sim, um retratista sensível ao voltar seu olhar para diversas personalidades da época. Somos surpreendidos por um descontraído Cassiano Ricardo, de pijama e gravata ao lado de sua arara de estimação, pela figura elegante de Monteiro Lobato com suas indefectíveis sobrancelhas em uma bela composição que nos lembra a foto do ateliê de Mondrian realizada por André Kertèsz e pela, talvez, imagem mais conhecida de B.J.
Duarte, o retrato, na verdade uma bela máscara expressionista, de Mário de Andrade. Aí estão, sem dúvida e nostalgia à parte, as melhores páginas deste livro.
"Horacio Coppola: Visões de Buenos Aires" nos surpreende a partir da fotografia que ilustra sua capa. Vultos misteriosos, sombras de pessoas e toldos esvoaçantes desenham sobre uma calçada a racionalidade geométrica das cidades que, sobreposta ao emaranhado das existências humanas, tanto intrigava Italo Calvino.
E Coppola continua a nos encantar livro adentro com uma sucessão de páginas vibrantes que nos revelam, nas palavras de Jorge Schwartz, que assina o texto de abertura, a influência de que "o breve período da passagem pela Bauhaus, [...], deve ter confirmado essa atração pela linearidade e pela síntese despojada e geométrica que caracterizaria a sensibilidade de toda uma geração, a chamada Nova Visão". Nota-se também uma proximidade com o trabalho de Albert Renger-Patzsch fotógrafo alemão que, a partir de 1928, rebelou-se contra os trabalhos temáticos tão em voga em sua época para dedicar-se à representação dos valores estéticos e pictóricos dos objetos do cotidiano.
Igualmente, o onipresente André Kertèzs, desbravador pioneiro da vida nas calçadas, não era um desconhecido do fotógrafo argentino. Munido dessas referências, que não o impediram de possuir personalidade própria, Horacio Coppola bateu pernas. Esquadrinhou Buenos Aires de cima a baixo, de dia e de noite, explorando as mais diversas possibilidades e situações da vida e da paisagem da cidade. Suas imagens atingem um alvo preciso, situado muito além das aparências e distante do simples e frio registro técnico que, infelizmente, já bastaria para alguns.
As fotografias de Horacio Coppola, um original fotógrafo andarilho, hoje com a idade de 101 anos, nos revelam a vibração, os espantos de um dobrar de esquina e, ainda, o fervor de Buenos Aires: "As ruas de Buenos Aires já são minhas entranhas..." como escreveu Jorge Luis Borges ("Fervor de Buenos Aires", 1923).
Na comparação inevitável entre B.J. Duarte e Horacio Coppola, não podemos deixar de reconhecer que, desta vez, perdemos para los hermanos.

CRISTIANO MASCARO é fotógrafo, autor de "São Paulo" (Senac).


B.J. DUARTE - CAÇADOR DE IMAGENS
Textos: Rubens Fernandes Junior, Paulo Valadares e Michael Robert Alves de Lima
Editora: Cosac Naify (tel. 0/xx/11/ 3218-1444)
Quanto: R$ 42 (208 págs.)


HORACIO COPPOLA - VISÕES DE BUENOS AIRES
Autor: Horacio Coppola
Editora: IMS (tel. 0/xx/11/ 3371-4455)
Quanto: R$ 40 (116 págs.)


0 comentários:

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial

Blogger Template by Blogcrowds